A Bíblia reivindica para si a autoria divina, por isso é absolutamente importante aprofundar o papel da atividade de Deus em seu processo de composição humano e institucional.
É bom lembrar que a Bíblia pode ser entendida como uma “biblioteca”, (um conjunto de vários livros), e cada livro ai contido não foi obra de um único autor individual, «assim, vemos a Bíblia crescendo quando o povo Cresce, mudando com as mudanças sociais do povo e se tornando padronizada à medida que o povo busca estabilidade, ver as Escrituras a partir dessa perspectiva deve ajudar o leitor a valorizar a descrição da Bíblia como ‘a palavra de Deus em palavras humanas”.
Aqui entramos no tema da Inspiração da Bíblia: Nos últimos anos vimos várias tentativas de solucionar o dilema da autoria dual (divina e humana) e as forças e fraquezas de cada uma das soluções apresentadas pelos estudiosos. Embora esta seja uma questão muito importante ao ponto de não ser menosprezada, o significado do texto é, em última análise, a questão mais importante. A bíblia adquire relevância e significado a partir da Fé do Povo de Israel em um Deus que o elegeu seu Povo, por conseguinte: ‘Povo de Deus’.
A expressão “Povo de Deus” serve de exemplo. Nossos antepassados religiosos acreditavam que constituíam “o Povo de Deus”, e esse conceito não só os identificou, mas também modelou o caminho que seguiram através da história e lhes explicou a razão de continuarem a sobreviver. Para eles, ser “o Povo de Deus” significava que Deus os chamara, conduzia e os protegia. Tal fé foi vivida, custodiada e passada de geração em geração em forma de tradições primeiramente orais e paulatinamente escritas.
Contudo, Tradições ligeiramente divergentes e, às vezes, até muito diferentes poderiam surgir e coexistirem, na verdade surgiram. Exemplos de tal diversidade incluem os dois relatos da Criação (Gn 1,1-2,4a, e Gn 2,4b-25) e os vários relatos da conversão de Paulo (Gl 1,13-17, At 9, 1-9; 22,6-11; 26,12-18). Tradições diferentes não causavam necessariamente tensões indevidas dentro da comunidade, desde que a identidade do povo não fosse ameaçada, um exemplo evidente disto, é a coexistência das quatro tradições evangélicas (Mateus, Marcos, Lucas e João), compreendidas como um único Evangelho em quatro formas diversas.
Os estudiosos concordam que nem todas as Tradições sagradas do antigo Israel e/ ou do Cristianismo primitivo foram conservadas. Entre as que foram, nem todas gozam do mesmo grau de autoridade. “Em sentido bastante real, a autoridade bíblica está presente na interação entre uma tradição autêntica e a comunidade viva que a interpreta”[i]. Aqui se explica os vários Cânones da Sagrada Escritura, deste o Hebraico até as várias Composições cristãs. Para o Cristianismo, o Novo Testamento possui uma excelência com relação ao Antigo Testamento e dentro do Novo Testamento, os Evangelhos com relação aos outros livros neo-testamentários;
A palavra de Deus, que é virtude de Deus para a salvação de todos os crentes (cfr. Rom. 1,16), apresenta-se e manifesta o seu poder de um modo eminente nos escritos do Novo Testamento. […]. Ninguém ignora que entre todas as Escrituras, mesmo do Novo Testamento, os Evangelhos têm o primeiro lugar, enquanto são o principal testemunho da vida e doutrina do Verbo encarnado, nosso salvador. […]. Com efeito, aquelas coisas que os Apóstolos, por ordem de Cristo, pregaram, foram depois, por inspiração do Espírito Santo, transmitidas por escrito por eles mesmos e por varões apostólicos como fundamento da fé, ou seja, o Evangelho quadriforme, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João.
O cânon, então, tem a ver com a autoridade de quem, por primeiro, fez a experiência da revelação de Deus. É uma afirmação do passado que continua a ser atuante no presente. Como literatura, é uma coleção dos escritos religiosos formativos da comunidade. Os fiéis creem que esses escritos tiveram suas origens na revelação e que, como memória histórica, continuam hoje a ser fonte da revelação. «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, […]. Sempre as considerou, e continua a considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé».
Hoje como ontem, a fé de modo geral está ameaçada pelo risco do intimismo e da privatização da experiência religiosa. Isso ameaça não só a identidade da fé, mas também sua credibilidade diante do mundo; haja visto, os grandes conflitos existentes no mundo frutos de uma estreita visão religiosa.
Por tanto, a grande exigência da fé Cristã, antes de enunciar corretamente seus conteúdos e conceitos, é levar a cabo uma práxis vital orientada radicalmente em Cristo e à construção do Seu Reino no meio do mundo. O que só será possível a partir de um autêntico e perseverante estudo dos textos Sagrados. Para isto,
É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas, sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados.
Como se pode ver a Ciência Bíblica e sua Interpretação está em continuo avanço. Contudo, a práxis (a vivência da fé) é uma dimensão constitutiva da fé Cristã que deve estar em primeiro plano. A fé em Cristo corretamente enunciada deve estar unida fundamentalmente com a fé corretamente praticada e levada a cabo no meio da história e da sociedade. Os frutos desta devem se fazer sentir no meio da realidade no sentido de produzir uma vida melhor para o homem todo e todos os homens; com influxo claro e direto no meio ambiente e em todo o Mundo, como nos ensina o Magistério do Papa Francisco com a Carta Encíclica Laudato Si’, Sobre o Cuidado da Casa Comum.
Frei Ronaldo Gomes da Silva, OFMConv.
CUSTÓDIO PROVINCIAL
Notas: 1. São Jerônimo. No ano 382, Pe. Jerônimo foi chamado pelo papa Dâmaso para ser seu secretário particular. Já em Roma, recebeu a incumbência de traduzir a Bíblia do grego e do hebraico, para o latim. Neste trabalho, ele dedicou quase toda sua vida. O conjunto final de sua tradução da Bíblia, em latim, se chamou “Vulgata” e se tornou oficial no Concílio de Trento. Desde 1947, já se celebrava o Dia da Bíblia em 30/09, data de falecimento do santo; em: salvatorianos.org.br/por-que-setembro-e-o-mes-da-biblia/.
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D. Bergant, CSA; Robert J. Karris, OFM (Organizadores), Comentário Bíblico (Volume I), Loyola, São Paulo, 1999, (Original: The Collegeville Bible Commentary, 1989 by The Order of St. Benedict, Inc. The Liturgical Press Collegeville, Minnesota), 13.
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Cf. D. Bergant, CSA; Robert J. Karris, OFM (Organizadores), Comentário Bíblico (Volume I), 15.
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Idem, 15.
5.Constituição Dogmática Dei Verbum. Concílio Vat. II, nº 17-18; em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html.
6.D. Bergant, CSA; Robert J. Karris, OFM (Organizadores), Comentário Bíblico (Volume I), 16.
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Dei Verbum, nº 21.
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Ibidem, nº 22.
9.Cf. G. Gardaropoli, Evangelicità, Evangelizzazione, in E. Caroli, G. Zoppetti, F. Olgiati, P. Bertinato, S. Cattazzo, P. Bogon, C. Fillarini, DICIONÁRIO FRANCISCANO, Messaggero di S. Antonio, Padova, 1983, 549-572.
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Gardaropoli, Evangelicità, Evangelizzazione, 554.
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Cf. Ibidem, 2141.