“SUA CANONIZAÇÃO E TRASLADAÇÃO DE SEUS RESTOS MORTAIS
1. Por uma ascensão continua e com a ajuda da graça divina, chegara Francisco, amigo e servo do
Altíssimo, …s maiores culminâncias de sua existência: fundador e chefe da Ordem dos Frades Menores,
propagador da pobreza, modelo de penitência, pregador da verdade, espelho de santidade e exemplo
acabado da mais alta perfeição evangélica. O Senhor que havia dado uma glória magnífica ainda em vida
a este homem admirável, riquíssimo na pobreza, sublime na humildade, portentoso na mortificação,
prudente na simplicidade e. extraordinário na honestidade de todo seu comportamento, tornou-o
incomparavelmente mais resplandecente de glória depois de sua morte. Efetivamente, ao deixar este
mundo aquele homem santo e ao entrar seu espírito ser fico na mansão ditosa da eternidade, para aí se
inebriar suavemente na fonte inesgotável da vida, sua alma deixava neste mundo, impressas em seu
corpo, provas evidentes da glória que o aguardava: a carne santíssima, que ele havia crucificado com
todos os seus vícios, se havia transformado em nova criatura já nesta vida e oferecia a todos, por um
privilégio singular, uma imagem da paixão de Cristo e uma prefiguração da ressurreição.
2. Nas mãos e pés do santo, podiam-se ver os cravos milagrosamente trabalhados em sua carne pelo
poder de Deus e tão aderentes a ela que, quando se apertavam suavemente por um de seus lados,
sobressaiam pelo lado oposto, como se fossem feitos de uma só peça. Em seu lado também se viu uma
chaga semelhante em tudo … do lado do Salvador, a qual não lhe foi feita nem causada por artifício
humano, como símbolo daquela que no próprio Redentor foi causa da salvação e regeneração dos
homens. Os cravos tinham cor negra, semelhante ao ferro; mas a chaga do lado parecia vermelha,
formando, com a contração da carne, uma espécie de círculo. Dava a impressão de uma rosa belíssima. O
restante do corpo, que, pelas enfermidades e por sua própria natureza, aparentava uma cor morena,
apareceu iluminado de uma brancura própria dos corpos glorificados.
3. Seus membros, flexíveis e brandos aos que os tocavam, pareciam ter encontrado a frescura da
infância, e não poucos viram nisso um sinal de sua inocência. Os cravos se destacavam em sua cor escura
sobre aquela pele clara, ao passo que a chaga do lado, com sua cor vermelha, parecia rosa na primavera:
compreendem-se pois a alegria e admiração de todos os que podiam contemplar esse espetáculo de beleza
tão diversa e tão maravilhosa. Os Irmãos lamentavam a perda de um Pai tão amável, mas não deixavam
de se alegrar ao beijarem sobre ele as armas do Grande Rei. Um milagre tão inaudito transformava o luto
em júbilo. A inteligência humana por mais que investigasse, não chegava a compreender esses fatos, mas
caia num profundo êxtase. Para as testemunhas, esse espetáculo estranho e notável era um convite a crer
e a amar ainda mais, e para aqueles que recebiam a noticia representava um motivo de admiração e um
apelo a vir contemplá-lo.
4. Logo que ficou público o passamento do bem-aventurado Pai e se divulgou a fama dos milagres
que o acompanharam, o povo acorreu em grande número ao lugar onde jazia o santo, para contemplar
com os próprios olhos aquele portento, dissipando-se assim toda dúvida da inteligência e transformandose em gozo o pesar que a morte lhes havia causado. Muitos cidadãos de Assis puderam examinar com
seus próprios olhos as sagradas chagas e nelas imprimir o ósculo de seu amor. Um desses cidadãos,
cavaleiro instruído e prudente, chamado Jerônimo, homem muito famoso, duvidando da realidade das
sagradas chagas e mostrando-se muito incrédulo, como Tomé, com maior resolução e atrevimento que os
demais, começou a tocar, diante dos Irmãos e de seus concidadãos, as mãos e os cravos do santo, e a tocar
com suas próprias mãos os pés e a chaga do lado direito, como se quisesse com aquele toque nas
verdadeiras marcas das chagas de Cristo arrancar de seu coração e de todos os presentes as raízes mais
profundas de qualquer dúvida ou ansiedade. Esse homem tornou-se a seguir uma das testemunhas mais
convictas de uma verdade que ele havia adquirido de modo tão irrefragável, dando testemunho da verdade
e jurando sobre os santos Evangelhos.
5. Também os Irmãos haviam sido chamados ao passamento do Pai: juntaram-se … multidão e na
noite que seguiu … morte do bem-aventurado confessor de Cristo tantos louvores se deram a Deus, que
parecia mais uma liturgia celebrada entre os anjos do que uma vigília funerária. De manhã cedo a
multidão, munida de ramos e velas, trasladou o sagrado corpo … cidade de Assis, e ao passar em frente da
igreja de São Damião, onde morava então, com outras Irmãs, a gloriosa virgem Clara, que já goza
triunfante no céu, pararam um pouco para proporcionar …àquelas sagradas virgens oportunidade de ver e
beijar o venerável corpo, adornado de preciosas e celestiais pérolas. Chegados, por fim, … cidade,
depositaram, cheios de júbilo e com grande reverência, na Igreja de São Jorge, o precioso tesouro que
levavam. E isso fizeram em atenção ao fato de que, naquele mesmo lugar, Francisco havia aprendido, em
criança, as primeiras letras; aí pregou depois pela primeira vez e ai por fim encontrou, depois de morto, o
primeiro lugar de seu descanso.
6. Partiu deste mundo o ser fico Pai São Francisco no ano da encarnação do Senhor de 1226, ao
anoitecer do sábado 3 de outubro, sendo sepultado no domingo seguinte. Logo começou o bemaventurado Pai, já reinando na eterna glória, a resplandecer por seus muitos e estupendos milagres,
fazendo o Senhor que a sublime santidade com que Francisco sobressaíra no mundo, como exemplo de
santos costumes e perfeita justiça, recebesse um testemunho irrecusável do céu com os prodígios que
operava, quando já reinava com Cristo na pátria celeste. Logo se espalharam pelo mundo os milagres do
santo; e os extraordinários benefícios que por sua intercessão se alcançavam acenderam em muitos o fogo
do amor divino e os estimularam … devoção e ao culto do santo, a quem aclamavam com as palavras e as
obras. Por outro lado, também não demoraram a chegar aos ouvidos do Papa Gregório IX as grandes
maravilhas que Deus operava por intercessão do servo de Deus.
7. O pastor da Igreja que nenhuma dúvida tinha sobre sua admirável santidade, depois de todos os
milagres a ele referidos desde a morte do santo e de todos aqueles prodígios de que fora testemunha
durante a vida, tendo visto com seus olhos e tocado com suas mãos, por assim dizer, esses fatos, não
duvidando da glória que o Senhor já lhe reservara no céu, decidiu, para pautar sua conduta com a de
Cristo de quem ele era vigário, glorificá-lo também na terra propondo-o … veneração de todos. A fim de
dar ao mundo inteiro plena certeza sobre a glorificação do santo, mandou examinar pelos cardeais menos
favoráveis … causa todos os milagres relatados e atestados por testemunhas fidedignas: foram
cuidadosamente verificados, reconhecido seu valor, e uma vez obtida a unanimidade de julgamento e
aprovação entre todos os seus Irmãos e de todos os prelados presentes … Cúria, o papa decidiu canonizar
Francisco. Foi pessoalmente a Assis no ano de 1228 da encarnação do Senhor e, no dia 16 de julho, que
era um domingo, durante solenidades que seria por demais longo descrever aqui, inscreveu o bemaventurado Pai no rol dos santos.
8. No ano do Senhor de 1230, dia 25 de maio, durante o CAPÍTULO geral reunido em Assis, os
Irmãos transportaram para a basílica construída em sua honra o corpo do santo consagrado ao Senhor.
Durante a trasladação desse tesouro sagrado marcado com o selo do Grande Rei, aquele cujas marcas ele
trazia dignou-se, por seu intermédio, realizar numerosos milagres para que, ao odor suavíssimo que
desprendia, fossem os fiéis atraídos a correr em seguimento de Cristo. Efetivamente, era muito justo que
aquele a quem Deus havia trasladado, como em outro tempo a Enoque (cf. Gn 5,24), ao paraíso da mais
sublime contemplação, por ter sido durante a vida tão fiel e tão amado, e a quem havia arrebatado ao céu
em um carro de fogo, por seu ardente zelo de caridade, como a outro Elias (cf. 4Rs 2,11), era muito justo
que aqueles ossos benditos de Francisco, que haviam de germinar maravilhosamente, espalhassem
agradabilíssimo perfume desde seu sepulcro, como flores de primavera plantadas nos jardins do céu.
9. Brilhara ele em vida por suas virtudes; e após sua morte resplandece de milagres, para a glória de
Deus, em todos os cantos da terra. Cegos, surdos, mudos, coxos, hidrópicos, paralíticos, possessos e
leprosos, náufragos e prisioneiros encontram, por seus méritos, um remédio para seus males. Não existe
doença, perigo ou necessidade …s quais ele não acuda com seu auxílio, para não falar dos defuntos que
ele ressuscitou milagrosamente. Dessa forma, a glória concedida a um santo manifesta a grandeza e o
poder do Altíssimo, a quem pertencem a honra e a glória por infinitos séculos dos séculos. Amém.”
Fonte: Legenda Maior de São Boaventura, capítulo 15.