Ordem dos Frades Menores Conventuais

Artigos, Formação, Notícias › 27/09/2022

Homilia do novo Custódio Provincial

 “Trago em mim as marcas do crucificado” (Gl 6,18)

Irmãos,

Nesta celebração eucarística, na qual marcamos o encerramento da primeira fase de nosso Capítulo Custodial, abrindo um novo quadriênio, em sintonia com toda a Ordem e todas as famílias franciscanas fazemos uma feliz memória da impressão das chagas de nosso Seráfico Pai São Francisco. Assim, na força do símbolo, transportamo-nos ao Alverne, ponto de chegada para ele e de partida para nós. Para ele, porque desde sua conversão plantou a cruz de Cristo no coração, crescendo em seu interior, tomando-o por completo até tornar-se visível como um selo de Deus. Para nós, porque vemos nele uma pegada de Cristo deixada no solo da fé para seguir em frente no amor e na entrega de si mesmo.

Nosso querido Pai e fundador fez experiência de encontro vivo com Jesus Pobre e Crucificado ao longo de seu processo de maturação. Encontrou-se com o Crucificado nas ruínas da igreja de São Damião, prostrando-se diante da imagem do Cristo crucificado. Como numa visão mística, pareceu ouvir dos lábios do Crucificado: “vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída” (2Cel 10,5). E, conta-nos Celano, que Francisco sentiu desde então uma inefável mudança em si mesmo, pois são impressos mais profundamente no seu coração, embora ainda não na carne, os estigmas da venerável paixão.

Expressão desse amor apaixonado a Cristo entregue à morte de Cruz por nós e da procura de sempre se assemelhar a ele é a Oração diante do Crucifixo de São Damião, na qual a adoração do Abandonado se faz invocação e testemunho da vontade firme de viver o seguimento dele. Pôr-se, sem condições, a serviço do Senhor crucificado transfigura todo o ser e modo de viver de Francisco e se irradia espontaneamente em relação aos outros, inspirados em uma regra exigente, entendida em adoração aos pés da Cruz, meditando sobre o perdão oferecido por Jesus aos que o crucificaram: “Quem não ama um só homem na terra a ponto de tudo lhe perdoar não ama a Deus”. É assim que o estilo de vida do Poverello começa a perturbar a lógica comum e a suscitar, junto com a admiração e a imitação, inquietudes e resistências. Francisco, porém, não se deixa perturbar por nada e por ninguém e vai adiante no caminho a ele indicado pelo Crucificado. Francisco entrou para a escola de Jesus Crucificado e caminha para uma crescente e profundíssima união com ele, aprendendo de maneira cada dia mais radical o caminho da humildade. Esta humildade, vivida com Jesus e por seu amor, leva Francisco a se esquecer de si mesmo, a pisar o próprio eu e viver para os outros sem reservas. Ele quer imitar cada vez mais a humildade do seu Deus, que é outro nome do seu amor infinito. No abandono humilde e confiante ao Senhor imensamente amado, Francisco aceita se rebaixar cada vez mais, perder toda a segurança, viver um desapego, cada dia maior, de sua própria obra e de si mesmo. Nada pode agora perturbar a paz de ficar escondido com Cristo em Deus.1

No entanto, foi ao ouvir o Evangelho acerca da missão dos apóstolos (Mt 10, 7-13), que Francisco compreendeu o real significado da voz do Crucificado, e imediatamente exclamou: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração” (1Cel 8,22). Assim, sob o toque ou o apelo de uma afeição, começou devotadamente a colocar em prática o que ouvira, isto é, distribuiu aos pobres todos os seus bens materiais, bem como renegou-se a si mesmo para que, exterior e interiormente livre, pudesse ir pelo mundo e anunciar aos homens a paz, a penitência e, enfim, o amor não amado de Deus.2

É neste contexto que Francisco faz experiência de Cristo chagado nas feridas dos leprosos. A partir do encontro com Jesus crucificado começa para ele sua nova vida e a procura das formas segundo as quais o Senhor lhe pedirá que a conduza. Como diz Tomás de Celano, “o santo vai até os leprosos e vive com eles para servi-los, por amor de Deus, em todas as necessidades. (1Cel. 1,17) Como o próprio Francisco deixou registrado em seu Testamento, “quando eu estava em pecado, parecia-me coisa muito dolorosa ver os leprosos, e o próprio Senhor me levou até eles e usei de misericórdia com eles. E, ao me afastar deles, o que me parecia amargo foi transformado em doçura da alma e do corpo. (Test. 1-4). Francisco encontrou-se com Jesus e aprendeu a amá-lo ternamente em sua condição de crucificado, a reconhece-lo e a querer servi-lo nos crucificados da vida e da história. O amor que manifestou a esses últimos brota do amor ao Filho de Deus abandonado na Cruz. Daí tudo muda na vida de Francisco, porque tudo se torna expressão desse único e intensíssimo amor que de Cristo crucificado se irradia no seu coração e o leva a reconhecer e amar Jesus em quem é mais abandonado. Sem esse amor total ao Filho de Deus encarnado, nada se compreenderia de Francisco e da sua obra!

Então chegamos ao Alverne. Aproximando-se a festa da Santa Cruz, o Seráfico Pai Francisco, na hora do alvorecer, se pôs em oração, diante da saída de sua cela, e entre lágrimas orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores”(I Fioretti)). E, relata Boaventura que, enquanto Francisco rezava, “viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is 6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos céus. E […] apareceu entre as asas a imagem de um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pés estendidos e pregados na cruz. […] Imediatamente começaram a aparecer nas mãos e nos pés dele os sinais dos cravos” (LM 13,3). Assim, Francisco transformara-se todo na semelhança de Cristo crucificado (cf LM 13,5). Pois, de fato, trazia Jesus no coração, na boca, nos ouvidos, nos olhos, nas mãos, nos sentimentos e em todos os demais membros (cf. I Cel 9,115), e consequentemente podia exclamar com o apóstolo Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).3

É em meio ao mistério desta cena seráfica que acolhemos pela fé em nossos corações as palavras do Senhor dirigidas a nós pela lente de Lucas:

 “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”. Auxiliados pela exegese moderna da homilética pertinente do Padre Jesuíta. Adroaldo, nos perguntamos:4Que significa “renunciar a si mesmo” – “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento…? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. “Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).

Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-nos, não ser mais o centro de nosso próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto. Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonância interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, descentrando-nos de nós mesmos. 

Jesus, em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe prestar culto, não nos colocar a seu serviço…

Nosso ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.

Mas, quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo…

Quando Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência dia-bólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.

Na vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.

segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus. A única possibilidade que se desenha diante da rejeição de muitos ao seu projeto de amor no anúncio do reino.

No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim…

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta… Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.

Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho que ouvimos: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.

Infelizmente, a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência… como se isso fosse agradável a Deus.

Privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada…

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também visibilização da salvação.

Nesse sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e condensou o significado de uma vida vivida  por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente. 5 

Ao longo de sua caminhada, Francisco amadureceu a imagem de Jesus Cristo, cujo rosto atrativo traz a fisionomia da pobreza, da abnegação e da cruz. Esta é a compreensão sinótica pela qual o Poverello deixa-se encantar e mover até descobrir ao longo de sua travessia um Jesus mais “joânico”, onde sobressai os títulos divinos de filiação como Palavra e Revelador do Pai, mediador entre Deus e a humanidade. 6 Por isso, não seria anacronismo nosso dizer que o Seráfico Pai, iluminado pela nossa hermenêutica atual, traz em si elementos desta compreensão de discipulado: vencer a idolatria do ego e colocar-se em prontidão de entrega. Esta foi a vida de amor de Francisco de Assis.

Irmãos, o Senhor nos deu a graça de celebrar este mistério. Aqui estamos, interpelados e convidados a voltar nosso olhar para a Cruz, a cruz bizantina de São Damião, vendo nela o olhar do Ressuscitado que nos atravessa de esperança e nesta encontrar nosso Seráfico Pai abraçado, absorto, terno e solidário com os braços vivos do Senhor. Nele, o primeiro depois do único, o Senhor continua a nos chamar ao seu seguimento, desapegando e renunciando às forças do “ego” e nos colocando, sempre de maneira nova em prontidão determinada para segui-Lo. Quantos Alvernes ao longo de nossa história pessoal e comunitária já não ficaram lacrados em nossa memória e em nosso coração. Quantas e quantas vezes não fomos confrontados com as chagas dos crucificados de nosso tempo e em quantas delas conseguimos converter amargura em docilidade? Quanta ocasião histórica para ajudar a descer da cruz os pobres com quem convivemos, símbolos de milhares de crucificados pela pandemia do coronavírus, da fome, do ódio, da indiferença? Em muitos momentos a cruz parecia deveras pesada, apontando para sofrimento e sacrifício e a dor implacável. Também para dentro de nossa Fraternidade Custodial, ao longo desses anos a cruz se fez sentir pelas saídas de irmãos nossos da Vida Consagrada, pela apatia de uns, o ressentimento de outros, pelas feridas não tratadas e não curadas de cada um de nós. Mais uma vez o Senhor nos pede, e agora, de maneira institucional a esse aggiornamento. O momento cruz que se desenha diante de nosso horizonte não pode ser entendido nem acolhido na sombra de nossos medos, mas antes sinal luminoso de discipulado maduro que deseja ir em frente, cada um, na força e partilha da fraternidade, trabalhando o desarmamento do “ego” na grata disposição da entrega de si mesmo ao Senhor.

Nossa Custódia, afetada pelas circunstâncias e contextos onde está fincada, está viva e dinâmica no auge de seus 76 anos. Por isso, motivo a todos ao passo que me comprometo, como o primeiro entre vós a trabalhar desde já para que de maneira fraterna e custodial possamos abraçar os desafios que já se anunciam. O segredo de Francisco de Assis é Jesus Cristo Crucificado, que com sua vida e pregação recorda a nós e ao mundo que Jesus de Nazaré é o Cristo de Deus, o vivente e com muita segurança pode dizer, apropriando-se das palavras do Apóstolos; trago em mim as marcas de Cristo. E o nosso segredo? Poderia sê-lo diverso daquele que nos inspira? Podemos, solidários com Francisco, dizer que somos marcados pelo crucificado-ressuscitado? Como Maria, nossa Imaculada Conceição, presente e solidária à sombra da Cruz possamos sincera e honestamente pedir, rezando: “Faça-se em mim, em nós, segundo a vossa Palavra”, o vosso desejo e o vosso plano de amor, porque mirando nosso olhar para o alter Christi, também ele crucificado e para cada um de nós, descobrimos que o amor deixa marcas.

Homilia de Frei Carlos Charles, Custódio Provincial na missa da Impressão das Chagas, antecipada para a véspera, abrindo seu governo custodial. 16/09/2022

1 Cf. FORTE, Bruno. Seguir Jesus com São Francisco de Assis, Dão Paulo: Loyola, 2018, p. 29-41.

2 Cf. Frei João Mannes, OFM. O perfeito amor de São Francisco ao Crucificado, in: https://franciscanos.org.br/vidacrista/o-perfeito-amor-de-sao-francisco-ao-crucificado/#gsc.tab=0.

3 Cf. Idem.

4 Transcrição na íntegra do Padre Adroaldo.

5 Cf. PALAORO, Adroaldo. Fidelidade no seguimento de Jesus, 12º Domingo do Tempo Comum, in: https;//Ignaciana.blog/2022/06/17/adroaldo-49.

6 Cf. IAMMARRONE, Giovanni. Cristologia, in: MERINO, J. A & FRESNEDA, F. M., Manual de Teologia Franciscana, Petrópolis: Vozes/FFB, 2005, p. 164-165.

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