Admoestações de São Francisco de Assis
Admoestações – 1
O CORPO DO SENHOR
1 Diz o Senhor Jesus a seus discípulos: Eu sou caminho, verdade e vida; ninguém vai ao Pai se não por mim.
2 Se conhecesses a mim, também conheceríeis certamente meu Pai; e desde agora o conheceis e o vistes.
3 Diz-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e basta para nós.
4 Diz-lhe Jesus: Tanto tempo estou convosco e não me conhecestes? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai (cf. Jo 14,6-9).
5 O Pai habita a luz inacessível (cf. 1Tm 6,16), e Deus é espírito (Jo 4,24), e a Deus nunca ninguém viu (Jo 1,18).
6 Por isso não pode ser visto senão em espírito, porque é o espírito que vivifica; a carne não adianta nada (Jo 6,64).
7 Mas nem o Filho, no que é igual ao Pai, é visto por alguém diferentemente do Pai, diferentemente do Espírito Santo.
8 Por isso todos os que viram o Senhor Jesus segundo a humanidade e não viram e creram segundo o espírito e a divindade que ele era o verdadeiro Filho de Deus, foram condenados;
9 assim também agora todos os que vêm o sacramento que se consagra pelas palavras do Senhor sobre o altar por mão do sacerdote na forma de pão e vinho, e não vêem e crêem segundo o espírito e a divindade, que é verdadeiramente o santíssimo corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, foram condenados,
10 pelo testemunho do próprio Altíssimo, que diz: Este é meu corpo e meu sangue do Novo Testamento [que será derramado por muitos] (Mc 14,22,24) e:
11 Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna (cf. Jo 6,55).
12 Por isso o espírito do Senhor, que mora em seus fiéis, é quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor.
13 Todos os outros, que não têm o mesmo espírito e presumem recebê-lo, comem e bebem a própria condenação (cfr. 1Cor 11,29).
14 Por isso: Filhos dos homens, até quando tereis um coração pesado? (Sl 4,3).
15 Por que não conheceis a verdade e credes no Filho de Deus? (cfr. Jo 9,35).
16 Eis que se humilha diariamente, como quando veio do trono real (Sb 18, 15) ao útero da Virgem;
17 vem diariamente a nós ele mesmo aparecendo humilde;
18 desce todos os dias do seio do Pai (cfr. Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote.
19 E como se mostrou aos santos apóstolos em carne verdadeira, assim também a nós agora no pão sagrado.
20 E como eles com a visão de sua carne só viam a carne dele, mas criam que era Deus contemplando com olhos espirituais;
21 assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corporais, vejamos e creiamos firmemente que é seu santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro.
22 E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século (cf. Mt 28,20).
Admoestações – 2
O MAL DA VONTADE PRÓPRIA
1 Disse o Senhor a Adão: Come de toda árvore, mas da árvore do bem e do mal não comas (cf. Gn 2,16-17).
2 Podia comer de toda árvore do paraíso porque, enquanto não foi contra a obediência, não pecou.
3 Pois come da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor diz e opera nele;
4 e assim, por sugestão do diabo e por transgressão do mandamento, tornou-se pomo da ciência do mal.
5 Por isso precisa sofrer a pena.
Admoestações – 3
A OBEDIÊNCIA PERFEITA
1 Diz o Senhor no Evangelho: Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33); e:
2 Quem quiser salvar sua alma, vai perdê-la (Lc 9,24).
3 Deixa tudo que possui e perde seu corpo o homem que se entrega inteiro à obediência, nas mãos de seu prelado.
4 E tudo que faz e diz, que saiba que não é contra sua vontade, se é bom o que faz, é verdadeira obediência.
5 E se alguma vez o súdito vê coisas melhores e mais úteis para sua alma que as que lhe ordena o prelado, sacrifique as suas voluntariamente a Deus, e trate de cumprir com obras as coisas que são do prelado.
6 Pois essa é a obediência caritativa (cf. 1Pd 1,22), que satisfaz a Deus e ao próximo.
7 Mas se o prelado ordenar alguma coisa contra a sua alma, ainda que não lhe obedeça, todavia não se separe dele.
8 E se por isso sofrer perseguição de alguns, ame-os mais por Deus.
9 Pois o que prefere sofrer perseguição a separar-se de seus irmãos, permanece de verdade na obediência perfeita, porque dá sua vida (cf. Jo 15, 13) por seus irmãos.
10 Pois há muitos religiosos que, com a desculpa de que vêem coisas melhores do que as mandadas por seus prelados, olham para trás (cf. Lc 9,62) e voltam ao vômito (cf. Pr 26,11; 2Pd 2,22) da própria vontade;
11 estes são homicidas e, por seus maus exemplos, põem a perder muitas almas.
Admoestações – 4
QUE NINGUÉM SE APROPRIE DA PRELATURA
1 Não vim para ser servido mas para servir (cf. Mt 20,28), diz o Senhor.
2 Os que estão constituídos sobre os outros, gloriem-se dessa prelatura como se tivessem sido encarregados do ofício de lavar os pés dos irmãos.
3 E quanto mais se perturbam por lhes tirarem a prelatura do que por lhes tirarem o ofício de lavar pés, tanto mais acumulam bolsas para o perigo da alma.
Admoestações – 5
QUE NINGUÉM SE ENSOBERBEÇA MAS SE GLORIE NA CRUZ DO SENHOR
1 Considera, ó homem, em que grande excelência te pôs o Senhor Deus, porque te criou e formou à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo e à sua semelhança segundo o espírito (cf. Gn 1,26).
2 E todas as criaturas que há sob o céu, a seu modo servem, conhecem e obedecem seu Criador melhor do que tu.
3 E mesmo os demônios não o crucificaram mas tu com eles o crucificaste e ainda crucificas, deleitando-te em vícios e pecados.
4 De quê, então, podes gloriar-te?
5 Pois se fosses tão sutil e sábio que tivesses toda a ciência (cf. 1Cor 13,2) e soubesses interpretar toda espécie de línguas (cf. 1Cor 12,28) e investigar subtilmente sobre as coisas celestes, não podes gloriar-te em todas essas coisas;
6 porque um só demônio sabia as coisas do céu e ainda sabe as da terra mais que todos os homens, ainda que houvesse algum que tivesse recebido do Senhor um conhecimento especial de suma sabedoria.
7 Do mesmo jeito, se fosses mais bonito e mais rico do que todos e mesmo que fizesses maravilhas, espantando demônios, tudo isso te é contrário, e nada te pertence e de nada podes gloriar-te;
8 mas disto podemos gloriar-nos: de nossas fraquezas (cf. 2Cor 12,5) e de carregar todos os dias a santa cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Lc 14,27).
Admoestações – 6
SOBRE A IMITAÇÃO SO SENHOR
1 Consideremos, irmãos todos, o bom pastor, que para salvar suas ovelhas sofreu a paixão da cruz.
2 As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e tudo o mais; e por isso receberam do Senhor a vida sempiterna.
3 Por isso é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos fizeram as obras e nós, lendo-as, queremos receber glória e honra.
Admoestações – 7
QUE A BOA OPERAÇÃO SIGA À CIÊNCIA
1 Diz o apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica (2Cor 3,6).
2 São mortos pela letra os que só desejam conhecer as palavras, para serem tidos como mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandes riquezas e dá-las aos parentes e amigos.
3 E são mortos pela letra os religiosos que não querem seguir o espírito da letra divina mas só desejam saber mais as palavras e interpretá-las para os outros.
4 E vivificados pelo espírito da letra divina são aqueles que não atribuem ao corpo toda letra que sabem e desejam saber mas por palavra e exemplo devolvem-nas ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo bem.
Admoestações – 8
QUE O PECADO DA INVEJA DEVE SER EVITADO
1 Diz o Apóstolo: Ninguém pode dizer: Senhor Jesus, a não ser no Espírito Santo (1Cor 12,3); e:
2 Não há quem faça o bem, não há um sequer (Rm 3,12).
3 Portanto, todo aquele que inveja seu irmão pelo bem que o Senhor diz e faz nele, incorre no pecado de blasfêmia, porque inveja o próprio Altíssimo, que diz e faz todo bem.
Admoestações – 9
SOBRE O AFETO
1 Diz o Senhor: Amai os vossos inimigos [fazei o bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam] (Mt 5,44).
2 Pois ama de verdade seu inimigo quem não se dói pela injúria, que o outro lhe faz,
3 mas se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma.
4 E lhe demonstre afeto por obras.
Admoestações – 10
SOBRE O CASTIGO DO CORPO
1 Há muitos que quando pecam ou recebem uma injúria, muitas vezes acusam o inimigo ou o próximo.
2 Mas não é assim: porque cada um tem em seu poder o inimigo, isto é, o corpo, pelo qual peca.
3 Por isso, bem-aventurado é o servo (Mt 24,46) que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo e sabiamente guardar-se dele;
4 porque, enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo visível ou invisível poderá prejudicá-lo.
Admoestações – 11
QUE NINGUÉM SE CORROMPA PELO MAL DE OUTRO
1 Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado.
2 E se alguma pessoa pecar de qualquer modo, e por isso, e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e encolerizar, entesoura para si a culpa (cf Rm 2, 5).
3 O servo de Deus que não se ira nem se perturba por coisa alguma vive retamente sem próprio.
4 E bem aventurado é aquele que não guarda nada para si, dando o que é de César a César e o que é de Deus a Deus (Mt 22,21).
Admoestações – 12
ESPÍRITO DO SENHOR QUE DEVE SER CONHECIDO
1 Assim pode conhecer o servo de Deus se tem o espírito do Senhor:
2 quando o Senhor fizer através dele algum bem, se sua carne não se exaltar por isso, porque é sempre contrária a todo bem,
3 mas se se tiver ainda mais diante dos olhos por mais vil e se estimar como menor do que os outros homens.
Admoestações – 13
SOBRE A PACIÊNCIA
1 Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). O servo de Deus não pode saber quanta paciência e humildade tem em si, enquanto tudo acontece como ele quer.
2 Mas quando vier o tempo em que os que lhe deveriam dar prazer fizerem o contrário, a paciência e humidlade que tiver nessa ocasião é tudo que tem e nada mais.
Admoestações – 14
SOBRE A POBREZA DE ESPÍRITO
1 Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
2 Há muitos que perseveram nas suas orações e trabalhos, fazendo muitas abstinências e suportando aflições em seus corpos.
3 Mas por uma só palavra que parecer injúria para o seu próprio eu, ou por alguma coisa que tirarem deles, logo se perturbam, escandalizados.
4 Esses não são pobres de espírito; porque o verdadeiro pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que batem no seu rosto (cfr. Mt 5,39).
Admoestações – 15
SOBRE A PAZ
1 Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,6).
2 Verdadeiramente pacíficos são aqueles que, com todas as coisas que sofrem neste mundo, por amor de nosso Senhor Jesus Cristo guardam a paz na alma e no corpo.
Admoestações – 16
SOBRE A LIMPEZA DO CORAÇÃO
1 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus (Mt 5,8).
2 São verdadeiramente limpos de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestiais e não deixam de adorar e ver sempre o Senhor Deus vivo e verdadeiro, com coração e alma limpa.
Admoestações – 17
SOBRE O SERVO DE DEUS HUMILDE
1 Bem-aventurado o servo (Mt 24,46) que não se exalta mais por causa do bem que o Senhor diz e faz através dele do que pelo que diz e faz através de outro.
2 Peca o homem que mais quer receber do seu próximo o que não quer dar de si ao Senhor Deus.
Admoestações – 18
SOBRE A COMPAIXÃO DO PRÓXIMO
1 Bem-aventurado o homem que suporta o próximo segundo a sua fragilidade naquilo em que gostaria de ser suportado por ele, se o seu caso fosse parecido.
2 Bem-aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor, porque quem guarda alguma coisa para si esconde em si o dinheiro do Senhor seu Deus (Mt 25,18) e o que julgava ter, vai ser tirado dele (Lc 8,18).
Admoestações – 19
SOBRE O SERVO DE DEUS HUMILDE
1 Bem-aventurado o servo que não se tem por melhor quando é engrandecido e exaltado pelos homens, do que quando é tido por vil, simples e desprezado,
2 porque quanto é o homem diante de Deus, tanto é e não mais.
3 Ai do religioso que foi posto no alto pelos outros e por sua vontade não quer descer!
4 E bem-aventurado o servo (Mt 24,4) que não é posto no alto por sua vontade e sempre deseja estar aos pés dos outros.
Admoestações – 20
SOBRE O RELIGIOSO BOM E O VÃO
1 Bem-aventurado é aquele religioso que não tem prazer e alegria a não ser nas santíssimas palavras e obras do Senhor
2 e com elas leva o homem ao amor de Deus com gozo e alegria (cfr. Sl 50,10).
3 Ai do religioso que se deleita em palavras ociosas e vãs e com elas leva o homem ao riso.
Admoestações – 21
SOBRE O RELIGIOSO VAZIO E FALADOR
1 Bem-aventurado o servo que, quando fala, não manifesta tudo a seu respeito procurando recompensa, nem é precipitado para falar (Pr 29,20), mas prevê sabiamente o que tem que falar e responder.
2 Ai do religioso que não sabe guardar em seu coração os bens que o Senhor lhe mostra (Lc 2,19-51) e em vez de mostrá-los aos outros por obras, quer mostrá-los às pessoas com palavras, visando recompensa!
3 Ele recebe sua recompensa (cf Mt 6,2;6,16) e os ouvintes obtêm pouco fruto.
Admoestações – 22
SOBRE A CORREÇÃO
1 Bem-aventurado o servo que recebe repreensão, acusação e castigo tão pacientemente de outro co-mo se fosse de si mesmo.
2 Bem-aventurado o servo que, repreendido, aceita com bondade, obedece confuso, confessa-se humildemente e satisfaz de boa vontade.
3 Bem-aventurado o servo que não é rápido para se desculpar e suporta humildemente a vergonha e a repreensão pelo pecado, quando não cometeu culpa.
Admoestações – 23
SOBRE A HUMILDADE
1 Bem-aventurado o servo que é tão humilde entre os seus súditos como se estivesse entre os seus senhores.
2 Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção.
3 Fiel e prudente é o servo (cfr. Mt 24, 45), que em toda culpa que comete não demora para punir-se interiorrnente pela contrição e exteriormente pela confissão, satisfazendo com obras.
Admoestações – 24
SOBRE O AFETO VERDADEIRO
1 Bem-aventurado o servo que ama o seu irmão tanto quando está doente, e não lhe pode dar satisfação, como quando está com saúde, e pode ajudá-lo.
Admoestações – 25
OUTRA VEZ SOBRE O MESMO ASSUNTO
1 Bem-aventurado o servo que ama e respeita seu irmão quando ele está longe do mesmo jeito que quando ele está perto, e não diz nada por trás dele, que não possa dizer com caridade na sua frente.
Admoestações – 26
QUE OS SERVOS DE DEUS HONREM OS CLÉRIGOS
1 Bem-aventurado o servo que tem fé nos clérigos que vivem retamente segundo a forma da Igreja Romana.
2 E ai daqueles que os desprezam pois, mesmo que sejam pecadores, ninguém deve julgá-los, porque só o próprio Senhor reservou o direito de os julgar.
3 Pois como é maior o ministério a eles confiado do santíssimo corpo e sangue do Senhor nosso Jesus Cristo, que eles recebem e só eles administram aos outros, tanto maior pecado têm os que pecam contra eles, mais do que contra todas as outras pessoas deste mundo.
Admoestações – 27
SOBRE A VIRTUDE QUE AFUGENTE OS VÍCIOS
1 Onde há caridade e sabedoria, aí não há temor nem ignorância.
2 Onde há paciência e humildade, aí não há ira nem perturbação.
3 Onde há pobreza com alegria, aí não há cobiça nem avareza.
4 Onde há quietude e meditação, aí não há solicitude nem distração.
5 Onde há temor do Senhor guardando a porta, aí o inimigo não acha jeito de entrar.
6 Onde há misericórdia e discrição, aí não há superficialidade nem endurecimento.
Admoestações – 28
QUE SE DEVE ESCONDER O BEM PARA NÃO O PERDER
1 Bem-aventurado o servo que entesoura no céu (Mt 6,20) os bens que o Senhor lhe mostra e que não quer manifestá-los aos homens para receber recompensa,
2 porque o próprio Altíssimo manifestará suas obras a quem lhe agradar.
3 Bem-aventurado o servo que guarda os segredos do Senhor em seu coração (cfr. Lc 2,19. 51).